top of page

Por Alice Kienen Gramkow

Ela se preocupa com a roupa que veste de manhã e adora se maquiar. Tá fazendo dieta, mas fica tentada com o cheiro de coxinha na cantina. Fez cursinho para tentar entrar na faculdade de Medicina, mas agora quer Odontologia. Ela poderia ser qualquer garota de 22 anos como eu ou você, mas algumas pessoas não a enxergam dessa forma. Tudo porque quando nasceu ela foi registrada como um menino.

Até a pré-adolescência sua aparência era como a de qualquer outro garoto. Gostava de brincar de boneca e só andava com meninas na escola, mas ninguém via problema nenhum nisso. Foi só quando as amiguinhas começaram a arrumar a sobrancelha e depilar as pernas que ela percebeu que também queria fazer parte disso tudo, mas por algum motivo aquilo não era apropriado para um menino.

Os pais não a repreendiam, mas não sabiam como reagir, e acabaram levando ela à terapia. “Por que não deixar o cabelo crescer? Jesus Cristo também tinha cabelo comprido”, era uma das dicas que a psicóloga dava. Mas nem mesmo a especialista compreendia exatamente o que se passava em sua mente.

É claro que na escola os apelidos não eram poucos – “viadinho”, “boiola”, “menininha” – e os professores em nada ajudavam. Ela acabou se isolando dos colegas e se tornando cada vez mais introvertida. Mas o que mais a incomodava é que ela nunca se sentiu como um menino homossexual, mas também não entendia o que era. Só sabia que era diferente da maioria. 

 

Ao final do ensino fundamental, ela saiu da escola estadual em que estudava para fazer o ensino médio em uma escola técnica, e foi a partir daí que tudo mudou. Sua aparência já estava mais feminina, e logo no primeiro dia a professora a reconheceu dessa forma. “Ela”. Saiu de forma tão natural, “você faz o trabalho com ela”, que nem houve tempo para estranhamento. Tudo se encaixou. E ali um mundo novo nasceu. Percebendo que gostava de ser tratada dessa forma, não sabia como conversar com os pais. Mas nem precisou. Contra sua vontade eles foram à reunião da escola e descobriram a novidade. “Mas por que vocês chamam ele de ‘ela’?”, questionava seu pai.

Apesar de já aceitarem a filha como ela era, seus pais não compreendiam muito bem a identidade de gênero da filha. Felizmente, com o tempo eles foram entendendo que ela era uma mulher transgênero, ou seja, apesar de ter sido registrada como menino, se identifica como menina. (Entenda mais aqui )

A transição continuou. Com o tempo ela passou a comprar roupas na sessão feminina e a usar um pouco de maquiagem. Cada dia que passava fazia com que ela parecesse ainda mais uma garota. Os parentes achavam aquilo tudo muito estranho, mas os pais se mantinham firmes: “Quando algum tio perguntava para o meu pai por que ele não fazia nada, ele simplesmente respondia: ‘se ela está feliz assim, eu é que não vou me meter’”, explica ela.

 

Uma nova esperança

Com o tempo surgiu uma novidade: as famosas cólicas mensais, que todas as meninas têm nessa idade. No começo, ela imaginou que fosse psicológico. Como alguém que nasceu menino poderia sentir cólicas menstruais? Foi só após alguns exames que ela descobriu que tinha um útero. Seu diagnóstico final foi de pseudo-hermafrodita. Além de transgênero, ela também é intersexual. Ela não apenas possui órgãos de ambos os sexos como também produz uma taxa maior de estrogênio. A partir deste momento, tudo fez sentido para ela. As lágrimas finalmente foram de felicidade.

 

Entendendo melhor como seu corpo funciona, ela pode começar o tratamento hormonal para parecer mais feminina do que já era. Mas o mais importante é que ela finalmente pôde se sentir ela mesma. Se libertar de tudo que a fez questionar sua existência no passado.

O próximo passo

Só falta uma etapa, e uma das mais importantes: passar pela cirurgia transexualizadora. Infelizmente o processo é caro e demorado no Brasil, mas seu ânimo não cai por causa disso. Segundo ela, seria uma libertação. Até porque esta mudança representaria o que mais importa para ela: finalmente ser reconhecida, civilmente, como uma mulher. Apesar de ela já ter entrado com um processo na justiça para mudar seu sexo nos documentos, a forma mais fácil de conseguir isso no país é passando pela cirurgia. 

Ela continua com o nome que seus pais lhe deram quando nasceu. Dessa forma, ela ainda pode se apresentar pelo mesmo nome que consta em seus documentos, mas isso não é suficiente para os empregadores da cidade. “Já cheguei a conseguir a vaga e, ao levar os documentos, ser recusada”. Felizmente ela trabalha com a sua mãe e planeja começar a faculdade logo, pois ela não confia na empatia da comunidade blumenauense para chegar aonde planeja. “Se precisasse conseguir um emprego, seria como caixa de supermercado ou na limpeza. Isso quando não imaginariam que trabalho com prostituição”.

Inseguranças

Sua dificuldade em conviver com o seu corpo a fez acreditar que ninguém nunca a amaria de verdade, e ela acabou entrando em depressão. “Meu namorado na época aprontava muito e, para ajudar, eu não sentia mais vontade de fazer nada”, e então ela acabou parando de estudar e de trabalhar. Foi aí que ela engoliu 22 calmantes de uma vez só. Passou três dias desacordada. E, ao se levantar, enxergou uma nova vida a sua frente. Depois de emagrecer 12kg em duas semanas e terminar com o namorado, ela entendeu que realmente precisava parar de tentar se esconder do mundo.

 

Decepções amorosas não faltaram durante sua vida. Mas no seu caso, a dor envolvia diversos fatores, principalmente a aceitação de seu corpo. Era difícil para ela acreditar que alguém algum dia a amaria sendo dessa forma – mas, eventualmente, ela entendeu que as pessoas certas a admirariam sem se importar com isso. “Apesar de já aceitar melhor o meu corpo e entender que a pessoa certa vai me amar de qualquer jeito, quando não estou namorando essas

preocupações voltam. Fico pensando que ninguém nunca mais vai me querer”. 

Hoje, em seu dia a dia, as maiores dificuldades que ela enfrenta são as mesmas que nós enfrentamos. Mas sempre existirá aquele empecilho: muitos nunca a verão como parte da nossa sociedade enquanto ela continuar se identificando com um gênero diferente do que o que consta em seus documentos – mesmo ela sendo biologicamente intersexual. Infelizmente este fator ela não pode mudar. Mas todos nós podemos começar pelo que nos cerca. Desconstruindo os pensamentos transfóbicos das pessoas ao nosso redor.

Ou,ao menos, os fazendo entender que eles são tão seres humanos quanto todos nós. Ninguém

merece sofrer por ser diferente – e, afinal, será que ela é mesmo tão diferente assim? “A gente só tem uma vida. E a gente já cresce naquela coisa de isso é certo e isso é errado. Que homem tem que gostar de mulher. É tanto rótulo que não sobra espaço para amar de verdade. Eu acho que hoje em dia a gente não tá amando o suficiente. A gente tem que viver o que sente vontade de viver.”

O nome da fonte não foi revelado para preservar sua identidade. 

Quando ele percebeu que era ela: relato de uma transexual

Além de todo preceonceito vivenciado, uma das barreiras mais difíceis foi a do autoconhecimento

bottom of page